Opinião

De Nuremberg a Haia.

Brasil, 12 de janeiro de 2024.

Em nosso planeta sempre houve focos insalubres povoados por perversos. Até bem pouco tempo, entretanto, havíamos atingido um patamar evolutivo que nos permitia conseguir rechaçar ações vis – como as perpetradas em Israel, em 7 de outubro de 2023 – com muito mais facilidade.

Basta lembrar os fatos de um outro 7 de outubro, em 1985, quando quatro terroristas da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP) invadiram um navio italiano, na costa do Egito. Fizeram quatrocentos reféns, entre passageiros e tripulantes, e exigiram em troca a libertação de cinquenta comparsas presos em Israel. No dia seguinte, entre ameaças, escolheram um dos reféns, atiraram nele e o arremessaram no mar.

Há quatro décadas, a brutalidade daquela ação chocou o mundo. Não houve passeata em países ditos civilizados exigindo “varrer” Israel do Rio Jordão ao Mar Mediterrâneo. Muito menos covardia travestida de “rigor na análise” dada a sua “complexidade” de quem usa seus títulos acadêmicos para dar “carteirada” fazendo silêncio estrondoso diante do massacre de civis, enquanto discute fatos bíblicos e repassa análises sobre fronteiras e pedido de paz unicamente direcionado a quem é vítima e continua sob ataque (!).

Em 1985, Yasser Arafat, então líder da Organização de Libertação da Palestina (OLP), ciente do impacto negativo na opinião pública da ação violenta no navio, não titubeou e agiu rápido, determinando que o chefe da FPLP, Muhammad Zaidan, conhecido pelo codinome Abu Abbas, desmontasse a operação.

A propósito, onde se lê acima “na opinião pública”, leia-se: no contexto de um debate público mais decente que o atual. Quando até universidades no dito primeiro mundo estão infestadas de “passapanistas” – na linguagem das redes – de terroristas ou tergiversações em que a condenação do terrorismo é sempre seguida de um “mas”, o mesmo se dando em redações de jornais, ou seja, na dita elite pensante, indecente torna-se até insuficiente para definir um quadro que beira a distopia. Foi assim, para minha surpresa, no massacre do Charlie Hebdo, o atentado terrorista que culminou com o assassinato de integrantes da equipe do jornal satírico francês Charlie Hebdo em 7 de janeiro de 2015, em Paris. Na sequência, em mais um ataque em Paris, na casa de shows Bataclan, o mesmo subterfúgio “não defendo terrorismo, mas…”. Mas o quê? Sim, o Primeiro Ministro de Israel tem o apoio de extremistas religiosos. Sim, muitas sátiras do Charlie eram de gosto duvidoso. Sim, a França foi (e ainda) é um país colonizador. Dito isso, nada, absolutamente nada, justifica um ataque terrorista, e quem fez/faz uso de uma conjunção adversativa após supostamente condenar qualquer uma dessas ações as justifica. Quem condena, de fato, um ataque terrorista, pelo que ele é e representa, uma afronta a elementares direitos humanos e conquistas civis, não oferece justificativas para a barbárie na sequência. Ponto.

No ponto, porque oportuno, segue (mais um) didático e inspirador discurso da jornalista, ativista de direitos humanos, e membro do Parlamento Europeu, Assita Kanko, divulgado, ontem, em sua conta no Instagram (@assita_kanko), em tradução livre:

“Devemos condenar inequivocamente o brutal ataque terrorista do Hamas contra civis israelitas em 7 de Outubro de 2023, que desencadeou a atual situação de crise.
Todos os reféns devem ser libertados.
O Hamas deve ser desmantelado.
Só então poderá haver um cessar-fogo.
O Hamas é a pior coisa para israelenses e palestinos. Uma clara ameaça ao mundo livre.
O desmantelamento do Hamas deve ser uma prioridade global.
Hoje, o Parlamento Europeu caiu em si sobre isto. Temos de continuar a trabalhar para proteger os valores europeus.
Lembre-se do que aconteceu em 7 de outubro. Assisti às imagens da IDF. Isso me deixa até agora profundamente abalada.
Vivemos em um mundo onde em todo o mundo temos que proteger sinagogas e escolas judaicas.
Veja os cristãos mortos na África.
Os professores na França.
Temos de deixar de ser ingênuos em relação ao Islã radical e trabalhar neste sentido. Nossa liberdade e segurança. Temos de acabar com o terrorismo.”

Não menos didática e inspiradora foi a questão posta no Parlamento por Assita Kanko para as ditas feministas ocidentais em 21/11/2023:

“Como podem ficar em silêncio, quando mulheres e jovens são violadas, torturadas, os seus corpos carregados nus e cuspidos por homens barbudos gritando Allah Akbar? (…)
Por que seus lábios estão selados e os seus corações de pedra quando se trata da dor excruciante das mulheres judias? O movimento MeToo e as chamadas feministas ocidentais não se importam com todas as mulheres. (…)
Aqueles que não dizem nada sobre estas mulheres e os reféns, não deveriam estar aqui a falar sobre direitos humanos. (…) Talvez valha a pena considerar que um verdadeiro cessar fogo duradouro começará por trazer de volta todos os reféns para as suas casas e os violadores à justiça.
Assita Kanko”

Voltando ao 7/10/1985. Final da história, relatada pelo jornalista Leonardo Coutinho, na Gazeta do Povo, que li ainda em outubro de 2023: “os quatro terroristas foram presos, julgados e condenados. Abbas foi liberado e só reapareceu em 2003, quando foi encontrado pelos norte-americanos entocado em um esconderijo no Iraque.”

Ao fim da matéria, o jornalista Leonardo Coutinho pergunta:

“O que se passou entre 1985 e 2023?”

Essa pergunta voltou hoje à minha mente, agora, deslocada para 2024, após ver e ouvir o discurso de abertura do Dr. Tal Becker integrante do time jurídico de Israel na Corte Internacional de Justiça em Haia.

Por razões absolutamente alheias ao meu controle e conhecimento me coube viver nesse tempo que compartilhamos.

Nunca, nunca, reafirmo, pensei em ver e ouvir o que vi e ouvi, hoje. A acusação de genocídio (!) levada a Haia pela África do Sul contra Israel é (mais um) episódio distópico e contrafctual. Se é para falar de genocídio com o mínimo de honestidade intelectual, voltemo-nos para as ações perpetradas em Israel naquele 7/10/2023 – basta ler os objetivos do Hamas em sua carta de fundação e ver e ouvir o que tem sido expressamente declarado pelas lideranças daquele massacre, e que continuam a ameaçar Israel de novos ataques “de novo e de novo” (!). É ultrajante, portanto, para todas as reais vítimas, as vítimas daquele massacre em 7/10/23, a acusação levada a termo na Corte Internacional de Justiça (ICJ), tornando necessária essa lamentável passagem da história na qual é o Estado de Israel quem é colocado na posição de apresentar defesa técnica diante de uma insustentável acusação de genocídio, em meio a uma guerra que o Estado de Israel foi obrigado a travar – exercendo, diga-se, o legítimo direito à autodefesa nos termos do Artigo 51 da Carta da ONU, o que implica no direito de eliminar as ameaças que persistem do Hamas aos seus civis – após o massacre de 7/10/23.

“Genocídio”, a propósito, cuida-se de um termo elaborado após 1944 e não por acaso. Antes de possuir um significado jurídico é um conceito que foi especialmente criado para designar condutas que vieram a classificar a prática de conduta criminosa, cujo objetivo seja a eliminação da existência física de grupos nacionais, étnicos, raciais, e/ou religiosos.

Didaticamente, assim encontra-se devidamente exposto na Enciclopédia do Holocausto:

Em 1944, um advogado polonês judeu chamado Raphael Lemkin (1900-1959) tentou descrever as políticas de assassinato sistemático dos nazistas, incluindo a destruição dos judeus europeus. Ele formou a palavra “genocídio” combinando geno, da palavra grega que significa raça ou tribo, com cídio, palavra latina para assassinato. No ano seguinte, o Tribunal Militar Internacional instituído em Nuremberg, na Alemanha, acusou os líderes nazistas por “crimes contra a humanidade”. A palavra “genocídio” foi incluída no processo como termo descritivo e não jurídico.

Em 9 de dezembro de 1948, sob a sombra do Holocausto e em grande parte pelos esforços incansáveis de Lemkin, as Nações Unidas aprovaram a Convenção para a Prevenção e Repressão de Crimes de Genocídio. Essa Convenção estabeleceu o “genocídio” como crime internacional que as nações participantes “devem evitar e punir”. Embora muitos casos de violência contra determinados grupos tenham ocorrido durante a história humana, o desenvolvimento do termo, internacional e juridicamente, está concentrado em dois períodos históricos distintos: o período a partir da criação do termo até sua aceitação como lei internacional (1944-1948), e o período em que se tornou ativo, com o estabelecimento de tribunais criminais internacionais para processar acusados de crimes de genocídio (1991-1998). Evitar o genocídio, outra grande obrigação daquela Convenção, ainda é um grande desafio enfrentado por nações e por seres humanos individuais.”

A invocação de genocídio, portanto, ao ser banalizada – para além da ignorância do militante comum nas redes sociais -, em um tribunal internacional, e contra Israel, por si só, dissociado do que definido na Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, em 9 de dezembro de 1948, na Assembléia Geral das Nações Unidas, é uma ofensa e também um retrato do teatro de absurdos ao qual estamos sendo submetidos, tanto pelos retrocessos no debate público, como pela percepção de que muitas instituições se descolaram da realidade dos fatos e de suas atribuições finalísticas.

Os líderes, executores e financiadores daquele massacre cruel, indefensável, é que deveriam ser arrastados para um “novo Tribunal de Nuremberg”, mas, não. Nesse ponto, involuímos. Ok, a evolução não é linear, e nenhuma conquista é garantida, mas, nunca, nunca pensei de assistir tamanha infâmia.

Sim, após assistir o vídeo com a fala do Dr. Tal Becker, me senti em muitos tons acima do meu habitual. Quando escrevi a primeira versão desse texto, disse que não iria revisá-lo, mas o fiz em um processo particular de decantação de tudo que senti, que venho sentindo, aliás, desde aquele 7/10/2023.

Engana-se profundamente quem pensa que o que aconteceu naquele dia foi um ataque apenas contra judeus e portanto é algo que apenas aos judeus diz respeito; atinge a todos que trazem consigo princípios e valores humanistas, especialmente tidos como um consenso após o Holocausto. Acrescente-se que, muito embora o massacre em Israel tenha a assinatura de uma organização terrorista com propósitos genocidas em sua carta de fundação contra o direito de existência do Estado de Israel e a perseguição contra um grupo étnico específico, os judeus, as ações evidenciaram o claro o propósito de assassinar o maior número possível de pessoas, incluindo árabes, palestinos, muçulmanos, europeus, americanos, brasileiros, enfim, qualquer ser humano que estivesse no caminho, em Israel.

A inicial intenção de não revisar o texto, todavia, tinha uma intenção que se mantém. Daqui a alguns anos, se tiver o merecimento de estar viva para ver alguma justiça sendo feita ao 7/10/2023, quero poder reler o que escrevi, relembrar o que senti, e especialmente, espero que meus dois filhos tenham mais um registro para que saibam que eu não fui covarde, não silenciei, e não compactuei com o Mal Absoluto, novamente perpetrado contra judeus, e todos aqueles que vivem, hoje, no Estado de Israel, incluindo dois milhões de árabes/palestinos/muçulmanos que desfrutam dos mesmos direitos civis de judeus. Governo nenhum fala por mim, muito menos se optar por apoiar quem desprezo.

Seguem alguns trechos guardados na memória, do discurso de abertura do Dr. Tal Becker, advogado, consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores de Israel, ao rejeitar na Corte Internacional de Justiça (ICJ) a alegação da África do Sul de que Israel está cometendo atos de genocídio contra os palestinos, em Gaza:

“(…) O Estado de Israel está singularmente ciente do motivo pelo qual a Convenção sobre Genocídio, que foi invocada nestes procedimentos, foi adotada. Gravado na nossa memória coletiva está o assassinato sistemático de seis milhões de judeus como parte de um programa hediondo e premeditado para a sua aniquilação total. Dada a história do povo judeu, não é surpreendente que Israel tenha sido um dos primeiros Estados a ratificar a Convenção do Genocídio, sem reservas, e a incorporar as suas disposições na sua legislação interna. Para alguns, a promessa de “Nunca Mais” para todos os povos é um slogan; para Israel, é a maior obrigação moral”.

“Israel está empenhado, como deve estar, em cumprir a lei, mas o faz face ao total desprezo da lei por parte do Hamas. Israel está em guerra com o Hamas, não com o povo palestino.”

“Se houve atos que podem ser caracterizados como genocidas, então foram perpetrados contra Israel.”

“O principal componente do genocídio, a motivação de destruir um povo no todo ou em parte, está totalmente ausente”.

“A África do Sul afirma vir a este tribunal como guardiã dos interesses da humanidade, mas ao deslegitimar os 75 anos de existência de Israel, está a tornar-se bastante semelhante ao Hamas, especialmente considerando que praticamente não tem consciência da crueldade insondável do ataque de 7 de Outubro. A ameaça humanitária aos civis palestinos em Gaza decorre principalmente de viverem sob o controle de uma organização terrorista genocida que desconsidera completamente as suas vidas e bem-estar.”

Israel precisa defender-se tanto perante o Tribunal Internacional como na guerra que lhe é imposta pelo Hamas e pela Jihad islâmica Este é o maior assassinato em massa de judeus desde o Holocausto num dia.”

Como em qualquer guerra, o cidadão sofre, e isso é terrível. A África do Sul, na sua abordagem ao tribunal, nega a legitimidade da existência de Israel durante 75 anos.”

Caro Tribunal, em 7 de outubro, milhares de terroristas islâmicos invadiram Israel no meio de um feriado, o que os cidadãos de Israel vivenciaram foi assassinato. Os terroristas do Hamas torturaram crianças na frente dos seus pais e os pais na frente das crianças, os terroristas do Hamas violaram mulheres…o Hamas matou mais de 1000 pessoas e raptou mais de 200 civis. Alguns deles sobreviveram ao Holocausto, alguns foram executados.”

Senhora Presidente, Senhores Membros do Tribunal, a Convenção sobre o Genocídio foi uma promessa solene feita ao povo judeu, a todos os povos, de “Nunca Mais”. O recorrente convida o Tribunal a trair essa promessa. Se o termo genocídio pode ser tão diminuído na forma como defende, se as Medidas Provisórias puderem ser accionadas da forma que sugere, a Convenção torna-se uma carta do agressor. Recompensará, e até encorajará, os terroristas que se escondem atrás de civis, à custa dos Estados que procuram defender-se deles.”

É impossível compreender o conflito armado em Gaza sem apreciar a natureza da ameaça que Israel enfrenta e a brutalidade e a ilegalidade que o confrontam.”

África do Sul não está oferecendo uma lente ao tribunal. Está lhe oferecendo uma venda nos olhos”.

Se a alegação do requerente é que a Israel deve ser negada a capacidade de defender seus cidadãos, o resultado absurdo é que, sob o disfarce de alegações de genocídio, este tribunal está tentando impedir Israel de defender seus civis contra uma organização que busca uma agenda genocida contra eles.”

“Se o termo ‘genocídio’ pode ser tão diminuído da maneira que a África do Sul defende, se medidas provisórias podem ser acionadas da maneira que sugere, a convenção se torna uma carta de agressor. Recompensará, de fato, incentivará, os terroristas que se escondem atrás de civis, às custas dos estados que buscam se defender contra eles.”

Vivemos em uma época em que as palavras são baratas. Numa era de redes sociais e políticas de identidade, a tentação de usar o termo mais ultrajante, de difamar e demonizar, tornou-se para muitos irresistível. Mas se existe um lugar onde as palavras ainda deveriam importar, onde a verdade ainda deveria importar, é certamente um tribunal.”

Para manter a integridade da Convenção sobre Genocídio, para manter a sua promessa, e o próprio papel do Tribunal como seu guardião, é respeitosamente apresentado que este Requerimento e Pedido devem ser rejeitados pelo que são – uma difamação, destinada a negar a Israel o direito defender-se de acordo com a lei do ataque terrorista sem precedentes que continua a enfrentar e libertar os 136 reféns do Hamas que ainda mantém”.

Brasil, 13 de janeiro de 2024.

Li que a Alemanha decidiu intervir a favor de Israel na Corte Internacional de Justiça. Em sendo aceito o pedido, permitiria aos alemães levantarem argumentos favoráveis a Israel, e contrários, portanto, às acusações sul-africanas de genocídio.

Steffen Hebestreit, porta-voz do governo alemão, se manifestou em sua conta no X/Twitter, rejeitando firmemente a acusação de genocídio feita contra Israel. “Não tem base. Comentaremos, portanto, como terceiros na audiência principal perante a Corte Internacional de Justiça”.

Também juntou manifestação nos seguintes termos, livremente traduzidos:
“Em 7 de outubro de 2023, terroristas do Hamas atacaram, torturaram, mataram e sequestraram brutalmente pessoas inocentes em Israel. O objetivo do Hamas é exterminar Israel. Desde então, Israel se defendeu contra o ataque desumano do Hamas.

Tendo em vista a história alemã e o crime humano do Shoah, o governo federal está particularmente ligado à Convenção contra o genocídio. Esta convenção é um instrumento central do direito internacional para implementar o “nunca mais”. Nós nos opomos firmemente à instrumentalização política.

Sabemos que diferentes países avaliam a operação de Israel na Faixa de Gaza de forma diferente. No entanto, o governo federal rejeita decisiva e explicitamente a acusação de genocídio agora feita perante o Tribunal Internacional de Justiça contra Israel. Esta acusação não tem qualquer base.

O Governo Federal apoia o Tribunal Internacional de Justiça em seu trabalho, como tem feito há muitas décadas. O Governo Federal pretende intervir na audiência principal como uma terceira parte.”

Impossível não refletir, em retrospecto. Conforme disse na ocasião da fala contundente do Chanceler Alemão, em 12/10/2023, a capacidade humana (individual e coletiva) de reconhecer e corrigir os seus erros é condição sine qua non para o progresso, e para uma paz duradoura. A paz que os financiadores e executores do 7/10/2023 impedem com a perpetuação de seus crimes a cada dia que passa em que reféns, bebês, crianças, idosos, homens e mulheres – algumas com imagens registradas e divulgadas por seus algozes após os abusos perpetrados – continuam sob seu domínio. De todo modo, fica o registro; é um alento assistir a disposição oficial da Alemanha em 2024 para manter o compromisso moral para o “Nunca Mais”

Ainda, é difícil não relembrar o Julgamento em Nuremberg e a “defesa de Dresden”.

Infelizmente, o mesmo argumento usado por nazistas naquele tribunal, em sua defesa, é repetido, agora por muitos. Trata-se da tentativa de estabelecer uma equivalência moral entre os bombardeios lançados pelos aliados na Alemanha durante a Segunda Guerra – uma ação de guerra, portanto, com o indesejável e, também, inevitável resultado morte de pessoas inocentes, incluindo crianças, em um conflito em que forças antagônicas em muitos níveis se enfrentavam -, e a ação premeditada de oficiais nazistas assassinando alvos pré-determinados, incluindo crianças, por serem judias, ou qualquer outro ser humano integrante de um grupo étnico ou social eleito como um grupo a ser exterminado.

Tanto em Nuremberg como agora, compara-se números e todo o resto é descartado no lixo para equiparar as ações de guerra de Israel em Gaza às ações terroristas realizadas pelos integrantes do Hamas. Para meu absoluto desprazer, já li diversas análises assim, desde o massacre de 7/10/2023, desacompanhadas de evidências factuais para sustentarem as graves acusações que proferem ao discorrerem sobre as ações militares das Forças de Segurança de Israel (IDF) com uma espécie de lupa que não se costuma observar em relação a outros conflitos ou qualquer outro exército. Não se trata de afirmar ou negar, aqui, prima facie, a existência de crimes de guerra, trata-se de analisar os fatos tal e qual vem sendo amplamente divulgados. Me espanta, todavia, a facilidade com algumas acusações graves são feitas descoladas da realidade.

Naquele dia, em 7/10/2023, integrantes de uma organização terrorista cruzaram a fronteira para, de forma deliberada, assassinar, torturar, violentar e sequestrar seres humanos. Não é demais lembrar: seus executores fizeram questão de registrá-los. As informações divulgadas são de cerca de 1,2 mil mortos. Não sei dizer sobre os seres humanos torturados e violentados, possivelmente nunca saberemos exatamente. Quanto aos mantidos reféns, 130 pessoas. Israel não estava em guerra quando sofreu o ataque. Segundo o noticiado, as relações estavam distencionadas. Independente dos erros e/ou falhas de segurança cometidos pelo seu Governo o fato é: Israel foi tragada para a guerra em Gaza e além do dever de garantir que “nunca mais” aconteça outro 7/10/2023, há as centenas de pessoas mantidas como reféns. Se antes o Governo de Israel não fez o que devia para proteger seus habitantes daquela barbárie tem agora o dever de fazê-lo, é o que os EUA, França, Inglaterra, Canadá, todos esses países que se manifestarem publicamente contra a contrafactual alegação de alegação de genocídio no ICJ fariam. De forma deliberada, os terroristas executaram o massacre. De forma deliberada, também, expuseram a população de Gaza à guerra, desprotegida, atraindo um conflito armado para seu território e escondendo-se em túneis, enquanto mulheres, idosos e crianças palestinas mantinham-se expostas na superfície. Sequer é possível distingui-los, os combatentes não usam trajes militares, misturam-se aos “civis”. O uso dado a hospitais, escolas e mesquitas completa o quadro de horror.

Aos que se valem da mesma linha de argumento usada na “defesa de Dresden”, pondero pelos, de fato, compadecidos pela morte de inocentes em Gaza, sem deixar de constatar que de forma irrefletida ou não, acabam por apoiar os maiores algozes desses mesmos inocentes.

Aos que possuem um genuíno interesse pelo fim pacífico do conflito e uma reflexão atenta sobre a linha de argumentação supracitada, segue um trecho do depoimento do réu-chefe, SS-Gruppenführer Otto Ohlendorf, que havia sido comandante do Einsatzgruppe D, descrito no artigo “O caso nazista para o Hamas”, de Martin Kramer, em 26 de outubro de 2023:

“(…) Ohlendorf achou essa defesa tão poderosa que a invocou outra vez:

O fato de que homens individualmente mataram civis cara a cara é visto como terrível e é retratado como especialmente horrível porque a ordem foi claramente dada para matar essas pessoas; mas eu não posso avaliar moralmente uma ação melhor, uma ação que torna possível, pressionando um botão, matar um número muito maior de civis, homens, mulheres e crianças.

(O promotor-chefe, um americano, chamou essa interação em particular de “exatamente o que um fanático pseudo-intelectual SS-homem poderia muito bem acreditar.”)

Em Nuremberg, esse tipo de defesa tu quoque (“Eu não deveria ser punido porque eles também fizeram isso”) não era admissível. Ainda assim, no veredicto do Julgamento Einsatzgruppen, os juízes optaram por refutá-lo. “Foi apresentado”, escreveram os juízes, “que os réus devem ser exonerados da acusação de matar populações civis, já que todas as nações aliadas trouxeram a morte de não combatentes através da instrumentalidade do bombardeio”. (…)

[Eis o que os juízes lhes replicaram]:

Uma cidade é bombardeada para fins táticos… inevitavelmente acontece que pessoas não militares são mortas. Este é um incidente, um incidente grave com certeza, mas um corolário inevitável da ação de batalha. Os civis não são individualizados. A bomba cai, é destinada aos pátios ferroviários, casas ao longo dos trilhos são atingidas e muitos de seus ocupantes são mortos. Mas isso é totalmente diferente, tanto na verdade quanto na lei, de uma força armada marchando até esses mesmos trilhos ferroviários, entrando naquelas casas adjacentes, arrastando os homens, mulheres e crianças e atirando neles.”

O tribunal condenou Ohlendorf à morte. Ele foi enforcado em junho de 1951.

“Em última análise”

Nuremberg impôs uma distinção fundamental. Todas as vidas civis são iguais, mas nem todas as formas de tomá-las. O assassinato deliberado e proposital de civis é um crime; não é assim como tirar a vida de civis que é indesejado, não intencional, mas inevitável. Os erros cometidos por um esquadrão de bombardeiros não podem ser deduzidos dos assassinatos cometidos por um esquadrão da morte. É uma diferença agravada muitas vezes quando esses homens, mulheres e crianças civis são submetidos a tortura, estupro e mutilação antes de seu assassinato. Para emprestar a frase de Khalidi, “em última análise”, essa distinção é o que separa a civilização moderna de seus antecessores.

Mais perturbador é o pensamento de que ele separa o Ocidente contemporâneo de seus pares. Otto Ohlendorf e o regime que ele serviu fizeram tudo o que podiam para esconder suas ações dos olhos ocidentais. A Alemanha nazista ainda operava em um Ocidente fundado nos valores do Iluminismo. Uma violação tão massiva de um patrimônio compartilhado precisava ser escondida da vista.

Em contraste, o Hamas inicialmente procurou divulgar suas ações, assumindo que elas ganhariam aplausos, admiração ou pelo menos aceitação tácita nos mundos árabe e muçulmano. Aqui eles conseguiram além de suas expectativas. Os muitos milhões que não compartilham o patrimônio do Ocidente, e que não sabem quase nada sobre o Holocausto ou Nuremberg, veem as coisas como Khalidi diz que as veem. (Assim também, faz um pedaço de opinião alienada no Ocidente, onde tais visões são cultivadas e celebradas.)

Finalmente, e ainda mais perturbador, é o fato de que a defesa de Ohlendorf foi revivida para enquadrar o massacre de judeus. Sejamos claros: isso não é uma guerra mundial. 7 de outubro não é o Holocausto continuado: apenas em três meses de 1942, em média, os nazistas mataram mais de dez vezes a quantidade de judeus mortos em 7 de outubro, todos os dias (Operação Reinhard). E Gaza não é Dresden, Hamburgo, Pforzheim, Kassel ou qualquer uma das outras cidades alemãs bombardeadas tão intensamente que literalmente explodiram em chamas. A guerra Israel-Hamas é uma escaramuça em comparação.

Mas as defesas de Ohlendorf e do Hamas são as mesmas, assim como a identidade de suas vítimas. É por isso que é importante que Israel leve alguns dos gênios do Hamas vivos e os coloque em julgamento, ao estilo de Nuremberg. Israel deve isso aos mortos e feridos, suas famílias, todos os israelenses e todos os judeus. Mas são os árabes e muçulmanos que mais precisam ver as evidências, ouvir os testemunhos e pesar os argumentos. Nenhuma parte do mundo está mais longe de traçar a linha traçada em Nuremberg. 7 de outubro é o lugar para começar.”

Brasil, 14 de janeiro de 2024.

100 dias.

Cem dias se passaram desde aquele 7 de outubro em 2023.

Entre as inúmeras manifestações do dia, leio que Israel não descansará até que todos os reféns voltem para casa.

Vejo uma foto do bebê Kfir Bibas. Daqui a quatro dias completará 1 ano. Serão 104 dias mantidos como refém.

Em que “mundo” isso é defensável com aquelas conjunções adversativas, falsas equivalências, análises bíblicas?

Entre o Julgamento de Nuremberg e Haia, ou [repito]

Entre 7/10/1985 e 7/10/2023 o que aconteceu?

Encerro (re) afirmando que adoraria viver em mundo no qual a Paz e o Amor são valores inegociáveis e permanentes. Acredito firmemente que devemos buscar isso. Se um dia alcançaremos tal estado de evolução, não tenho como saber, me resta sonhar. No meu mundo imaginário para o tempo presente, em algum tribunal seria expedida uma ordem de prisão para esses assassinos confessos que depois de julgados e sentenciados seriam trancados em presídios de segurança máxima para o resto de suas vidas que tornaram descartáveis e miseráveis. Nesse mundo do futuro, para próximas gerações, um mundo regenerado, sequer haveria espaço para o Terror absoluto. O mesmo se diga para a Guerra. Nos tribunais haveriam outras questões com o que se ocupar. Idem para os seres humanos nessa espécie de novo pacto social.

Nada mais distante da nossa realidade, e eu prefiro, mesmo com imenso pesar, enfrentar a realidade. Sempre.

Daniela Meneses

Sou carioca, “naturalizada” no nordeste e lotada no Paraíso das Águas, com a família que formei, e é o meu maior patrimônio. O Rio segue em mim. Acredito no uso terapêutico do contato com a Natureza (especialmente o Mar), a Yoga, a Dança, a Corrida, e a Escrita, sendo esta última a razão pela qual mantenho o hábito de “pensar em voz alta” no Facebook. Graduada em Direito há 26 anos e especialista em Direito Constitucional, atuo na área. Humanista e reformista, acredito na efetividade de reformas cíclicas que conduzam ao aperfeiçoamento institucional, assegurando o exercício do conjunto de liberdades e das garantias fundamentais e individuais. A bem da verdade, na minha 1ª postagem no PDB há o suficiente para sintetizar meu “enquadramento”: me alinho aos valores do Iluminismo, da Revolução Gloriosa, das liberdades de crença, expressão, de pensamento, do direito de ir e vir e de propriedade. Por consequência, defendo o Regime Democrático, a Separação dos Poderes, o Estado laico, a Imprensa Livre, os valores humanistas, e o Due Process of Law. No mais, a pretensão adolescente de ser agente secreta (rs) talvez explique um dos meus temas prediletos: geopolítica. O gosto por história, literatura, e filosofia vem da época da escola. Provavelmente, minhas publicações, que representam minha posição pessoal, sem qualquer vinculação institucional, estarão associadas a esse mix. Até agora, estavam restritas para amigos, entre os quais estão muitos dos que fazem parte desse espaço descontraído de troca de ideias, o Papodeboteco.

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